terça-feira, 23 de junho de 2020

Ensaio Sobre Baratas



Certa feita uma amiga disse que em meio a uma discussão com o namorado, soltou a seguinte frase: “eu mesma mato minhas baratas”.
Quando  contou o que houve, essa frase ecoou nos meus pensamentos. É uma boa forma de dizer que ela é independente e autossuficiente, claro que estou fazendo uma interpretação lato sensu.
Por um breve momento, lembrei das várias baratas que já matei nessa vida. Sim, morando sozinha, se eu não matar, quem vai? Pior é saber que um bicho feio e nojento daqueles está habitando meu lar.
Não tenho medo de barata, tenho muito nojo, ojeriza e o único medo é que ela venha para perto de mim.
Já travei duelo com spray de cabelo, desodorizador de ambiente, detergente de louça, até amaciante de roupas. Pego a arma que estiver mais perto. Confesso que nas vezes em que não matei afogada, pelo menos deixei ela bem tontinha.
Não é uma tarefa fácil, até mesmo porque, conforme um documentário, as baratas são os únicos seres que sobreviveriam a uma guerra nuclear. Imagine...
Quem já passou por isso sabe o pânico que dá quando ela está em cima da porta, com as anteninhas se mexendo e olhando pra ti, parecendo pronta pra dar o bote.
Sou uma mulher que mata suas próprias baratas, instala chuveiro, troca resistência, botijão de gás, paga suas contas e lida com os embates do dia a dia sem ter pra onde correr e confesso que há pouco drama nisso. Momentos de solidão, vazio e carência fazem parte da vida de todas as pessoas que vivem sozinhas ou não.
Acho que foi isso que minha amiga quis dizer. Que ela sabe se defender e não precisa de um homem ao seu lado para servir como alegoria.
Vivemos numa época em que as pessoas querem, mais do que convenções sociais, serem felizes.
Este parece um texto feminista, mas não é, serve para os homens também. Pessoas que podem fazer um bom lar, criar laços saudáveis e perenes de afeição são as que sabem matar suas próprias baratas, são as que “pegam” juntas nos embates da vida e não têm medo de viverem sozinhas.
É claro que adoraria ter alguém comigo para ajudar a montar a melhor estratégia para matar o tal bichinho ou segurasse a lanterna para eu trocar a resistência do chuveiro à noite, quando queima no meio do banho (segurar a lanterna e trocar a resistência junto é uma árdua tarefa), mas não é por isso que vou por uma plaquinha no pescoço e escrever: “procura-se”.
Todos nós sempre estamos a procura de alguém para coexistir, ter filhos, para amar e ser amado,  eu não fujo à regra. Mas não quero um genitor para meus filhos, um provedor ou a companhia de uma pessoa que sirva para eu descarregar minhas carências ou satisfazer meus caprichos.
Então, que fique claro, não estou queimando sutiã, apenas ratifico a opinião de que, em tempos de relacionamentos falidos, solidão a dois e comodismo emocional,  opto por, assim  como as mulheres que me inspiram, a continuar matando, eu mesma,  minhas baratinhas.

"Minha solidão não tem nada a ver com a presença ou ausência  de pessoas. Detesto quem me rouba a solidão, sem em troca me oferecer a verdadeira companhia."

Friedrich Nietzsche



Reflexões sobre Desiderata

Hoje compartilho um dos meus poemas preferidos. Uso sua leitura como ancoragem em momentos de tempestades. Há uma linda história sobre ele. Sua letra serviu de inspiração para o famoso texto do Pedro Bial “Filtro Solar” e para o Renato Russo compor uma linda e famosa canção. Vocês vão reconhecer qual é ao lerem. Desiderata, do latim "coisas desejadas", é um poema que muitos atribuíram a um autor anônimo datado do século XVII. Na realidade, se trata de um poema do filósofo e advogado Max Ehrmann escrito em 1927, que só foi a público em 1948, quando sua esposa publicou seus poemas de forma póstuma. O erro surgiu porque, por muitos anos, ‘Desiderata’ foi um poema que passou de mão em mão impulsionado pelo movimento hippie, como uma espécie de ato de boa vontade e foi assim que chegou às mãos de um pastor de Maryland que, pela falta de autoria, colocou a legenda “Igreja de Saint Paul, 1692, ano da fundação da Igreja”. Alguém da congregação ficou encantado com o poema e pediu que um jornal o publicasse, tomando o mundo sem a real autoria. Após traduzido para mais de 70 idiomas, chegou nas minhas mãos em 2011. O mais salutar de tudo é que Max Ehrmann escreveu Desiderata para si mesmo em um momento de extrema crise e o carregava no bolso para sempre que se sentisse sem esperanças, ali encontrasse forças para ir adiante. Com todo amor, divido com vocês meu porto seguro em meio à tempestade que a todos acomete:
Desiderata: um caminho para a vida
Anda placidamente por entre o barulho e a pressa e lembre-se da paz que pode haver no silêncio.
Tanto quanto possível, sem sacrificar seus princípios, conviva bem com todas as pessoas.
Diga a sua verdade calma e claramente e ouça os outros, mesmo os estúpidos e ignorantes, pois eles também têm sua história.
Evite as pessoas que falam alto e que são agressivas, elas são um tormento para o espírito.
Se você se comparar aos outros, pode tornar-se vaidoso ou amargo, porque sempre existirão pessoas superiores e inferiores a você.
Desfrute de suas conquistas, assim como de seus planos. Mantenha-se interessado em sua própria carreira, mesmo que humilde, é um bem verdadeiro na sempre instável sorte do tempo.
Tenha cautela nos negócios, pois o mundo é cheio de trapaças. Mesmo assim não ignore a virtude que existe nesta área. Muitos lutam por ideais nobres e em toda parte é possível encontrar heroísmo.
Seja você mesmo. Sobretudo, não finja afeição. E nem seja cético sobre o amor, porque, apesar de toda a aridez e desencantamento, ele é tão perene quanto a relva.
Aceite gentilmente o conselho dos anos, renunciando com graciosidade às coisas da juventude.
Alimente a força do espírito para ter proteção em um súbito infortúnio. Mas não se torture com temores imaginários. Muitos medos nascem da solidão e do cansaço.
Adote uma disciplina sadia, mas não seja exigente demais. Seja gentil consigo mesmo.
Você é filho do Universo, assim como as árvores e as estrelas. Você tem o direito de estar aqui.
E mesmo que não lhe pareça claro, o Universo, com certeza, está evoluindo como deveria.
Portanto, esteja em paz com Deus ou o Infinito, não importa como você o conceba.
E, quaisquer que sejam as suas lutas e aspirações no ruidoso tumulto da vida, mantenha a paz em sua alma.
Apesar de todas as falsidades, maldades e sonhos desfeitos, este ainda é um belo mundo.
Alegre-se! Empenhe-se em ser Feliz.
Max Ehrmann
Carpe Diem!

Amor de Mãe


Essa semana aconteceu uma situação pitoresca. Estou no sítio onde reside minha mãe. Meu quarto é distante dos demais, mais silencioso e com linda vista para a lagoa. Mas, nem tudo são flores nessa bucólica quarentena. Numa dessas madrugadas fui acordada com um barulho estranho vindo do pátio, um grunhido que não reconheci como sendo de qualquer espécie de animal. Tentei voltar a dormir, mas o barulho parecia chegar mais perto. Comecei a imaginar um animal exótico descendente do bicho papão.
Confesso que não "titubeei", fui correndo para o quarto da mãe. Na verdade, a vontade era de conseguir uma cúmplice para verificar que animal era aquele. Chamei por ela, acordou meio sem entender. Expliquei o que acontecia, apenas disse: "Deita aqui e deixe ele ir embora". Aceitei. Ela me abraçou e ficamos ali, já estava amanhecendo, logo ligou a rádio para ouvir o noticiário de costume. Rimos da situação e acabou sendo uma diversão.
Após tantos anos, que nem lembro, dormi novamente na cama da mãe. Trinta anos separam a menina de 8 anos que corria para o quarto dos pais sempre que sentia medo, da mulher de 38 de hoje. Por um momento, naquela noite, voltei a sentir a segurança do amor de mãe, tão insubstituível e forte.
Enquanto ela me abraçava agradeci por estar ali, ter ela próxima ao alcance das mãos e de como muitos gostariam de ter a mesma sorte por ainda ter essa proteção. Carregamos em nós sempre a criança que um dia fomos, nos tornamos fortes, independentes, resilientes perante os problemas da vida, mas não raro, quando o sapato aperta, pensamos: “ah, eu só queria minha mãe!”
Sim, mãe é ter para onde correr! É receber em um só abraço mil carinhos dados, é ser perdoada antes mesmo de entendida. Mãe é a mão estendida, o beijo na testa, o olhar que te cuida distante. Mãe é a benção, é o milagre da multiplicação. Amor de mãe não tem explicação nem substituição.
Agradeço a todas as mães, através da minha. Sou porta-voz de muitos filhos e tenho certeza que eles fazem minhas, suas palavras. Obrigada mãe por todos os colos, por deixar aberta a porta do quarto, obrigada pela paciência e cuidado, pelos conselhos sábios, pela luta de todo dia ir ao trabalho e, ao voltar, te encher de mais trabalho. Desculpe as faltas que tive, o nariz empinado, a revolta da juventude, o leite derramado. Hoje sei que tuas lições foram a minha maior escola. Peço que Deus te guarde sempre dentro dele, mas perto de mim.
Que cada dia que aqui estejas, seja nossa companhia fonte de crescimento, alegria e leveza. Tenhas a certeza de que sou infinitamente grata por me carregares sempre bem cuidada dentro de ti, seja no teu ventre, no teu abraço ou no coração. Teu amor mãe, é a minha maior proteção e não há presente nem palavras que valorem a gratidão por ser sua filha. És, sem dúvidas, minha maior fonte de inspiração.
A todas as mães dedico esse texto, singelo, sem frases de efeito nem palavras rebuscadas, tal qual o amor que vocês têm por seus filhos, aquele que não pede nada em troca, que de tão singelo e puro transborda os vazios que têm o coração de toda gente e que só o amor de mãe entende e preenche.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Sobre Amor e Relacionamentos


Refletindo sobre o dia dos namorados, concluí que para um relacionamento para dar certo deve ser baseado na confiança, verdade e, principalmente, liberdade. É aí que mora o amor. Infelizmente no mundo de hoje há um conceito geral de que amar é para os fracos e demonstrar a fraqueza é suicídio. O sentimento se tornou tabu. Não cola aquela ladainha de medo de se ferir ou ferir o outro. Acidentes de carro matam milhares de pessoas todos os anos e nunca ouvi alguém falar que usa menos seu automóvel por medo de se acidentar. Não se morre de amor.

Também não estou dizendo que temos que amar desenfreadamente, mas com parcimônia, como merece serem vividas as coisas preciosas. É só seguir os sinais de advertência, igual ao semáforo. Fácil assim. Se alguém se joga de uma ponte por amor, com certeza não será por um amor não correspondido, mas por falta de amor-próprio.

Claro que é preciso cuidar para não cair nas armadilhas do falso amor. Li um texto que falava: “O problema é que nós sempre confundimos a ideia de amor com apego. Sabe, nós imaginamos que o apego e o agarramento que temos em nossas relações  demonstram que amamos, quando na verdade, é só apego que nos causa dor. Porque quanto mais nos agarramos, mais temos medo de perder."

Acredito nisso, amor é algo ao qual se deve ser grato e não obrigado, por isso num relacionamento devemos sempre fazer a reflexão se estamos namorando ou fazendo/sendo refém de uma situação egoica de apego e dependência emocional. Se esse relacionamento tem tirado a alegria e sono ou trazido paz, pertencimento e sorrisos. É normal que o sentimento mude durante o passar de um relacionamento, nos mantendo apegados ao que "éramos" negando que, muitas vezes, um amor romântico virou uma rica amizade e o apego tomou o lugar do genuíno amor. Vivemos da sombra dos dias alegres que já foram, das promessas que fizemos, da expectativa que criamos ou geramos, dos bens que compartilhamos. Isso causa tristeza e mata os dias. Nada tem a ver com amor.

Precisamos amar! Minha teoria é que o namoro ideal deve ter um triângulo onde esteja presente junto do casal o amor-próprio, divorciado da zona de conforto. O amor te respeita, não suporta. Dá ar, não sufoca. Todos merecemos dar e receber amor, o genuíno AMOR que não é alimentado por pena, culpa, medo, ciúmes, posse, aparências, nem cabe manipulações. Amor é essência, jamais aparência. O melhor termômetro é quanto o sorriso da outra pessoa faz nossa alma também sorrir e a liberdade que temos  para poder tranquilamente ficar ou sair. E se for assim, se jogue, arrisque sem medo! Ame e seja amado, é para isso que fomos criados.

Desejo a todos que namoram e aos enamorados por si e pela vida um lindo dia, repleto do amor simples e completo, assim como diz os lindos versos de Vinícius de Moraes:

Soneto do Amor Total

Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade…
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.
Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.
Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.
E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

Eu não consigo respirar



O assassinato cruel do americano George Floyd me fez lembrar da execução do brasileiro Evaldo dos Santos ocorrida há cerca de um ano atrás . Fiquei novamente sem sono e sem fôlego, me faz lembrar que nem tudo na vida é poesia, mas deve ser poetizado e politizado, não romantizado. Poesia também é reisistência.  Não podemos nos calar nem esquecer que nos tempos atuais, através dessas atrocidades, o homem ainda transforma as ruas das cidades em Coliseu.
Eu tô cansada, triste, atônita, mas com muita força para falar. Calar agora seria covardia tão cruel quanto essas mortes e de tantas outras que acontecem o tempo todo e nem sabemos. Repito o mesmo texto, infelizmente tão atual:

OITENTA TIROS

Hoje a insônia me acordou às 3 da manhã. Um amigo disse que nessa hora muita gente acorda, despertadas pelos anjos, para que, em silêncio, orem pela humanidade, como uma egrégora em busca de paz e acalento. Esse mesmo amigo sempre diz que o faço lembrar da Clarice Lispector. Não no brilhantismo com as palavras, mas na visceralidade da existência.

Não fiz a oração, mas resolvi rever a última entrevista da Clarice Lispector. A entrevista mais verdadeira e intensa que já assisti. Vinte e três minutos de alma exposta frente às câmeras com uma intimidade que o big brother jamais alcançou.

Em determinado momento é perguntado a ela qual, dentre seus trabalhos, seria o seu ‘’filho’’ predileto, por qual teria mais carinho. Ela responde que é o conto chamado “Mineirinho”. Ele fala sobre um bandido que, por suas palavras, morreu com treze balas, quando uma só bastava. Nesse conto descreve sobre o que sente a cada tiro.
Na entrevista ela diz ‘’ Eu me transformei no Mineirinho, massacrado pela polícia. Qualquer que tivesse sido o crime dele uma bala bastava, o resto era vontade de matar. Era prepotência’’.

Por fim, lhe foi perguntado em que medida essa crônica poderia mudar a ordem das coisas. Ela responde que não altera em nada e que escreve sem esperança que altere qualquer coisa.

Obviamente lembrei do Evaldo dos Santos Rosa e os 80 tiros que o mataram. O que diria Clarice ao saber dessa barbárie? Se com 13 ela morreu, com 80 o que lhe sobraria? Nem ladrão ele era. E mesmo que fosse, uma bala só bastava.

Os oitenta tiros não mataram Clarice, ela já está morta. Morreu 10 meses após a entrevista. Aliás, na mesma entrevista, ao final, diz também estar morta em vida, o que acontecia ao fim de cada obra, que eram seus hiatos. E assim como ela, os 80 tiros fuzilaram o Brasil inteiro, estamos todos mortos.

Morreu a nossa tão cansada crença na segurança, na justiça, no Estado, na leveza e alegria  que deveria permear nossos dias.
Como escreve a Clarice sobre Mineirinho:

“Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro. Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo."

Se nenhum desses oitenta tiros te atingiu, então, desculpe, mas você já está morto e não sabe. E quanto a nós, continuamos.  Vivos, mas nem tanto, ainda enlutados enxugando o pranto dessa morte todos os dias anunciada. Nasci branca, classe média, letrada. Sei que não foram miradas em mim as armas, mas acertaram em cheio meu peito.

A crônica foi publicada em 1978 no livro Para Não Esquecer. Hoje eu escrevo sabendo também que nada irá mudar, mas com um desejo imenso que futuramente esse episódio tão triste esteja apenas na lembrança em algum arquivo morto e não revivido nas capas dos jornais.

12. 4.2019

Fabrine Anjos de Souza

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Onde Habita o Artista


    “A ARTE faz-nos transmutar e sobretudo faz-nos ter vergonha de nós-mesmos, é uma força ética, problemática afirmadora da vida.” Acabei de ler essa frase do talentoso e premiado poeta Português Luís  Serguilha, o qual tenho a honra de chamar de amigo.  Ela me pôs a pensar... de fato, a arte devolve  a vida que a existência  tira.

    O Artista tem um papel profilático e ético na missão de encarar sua pior versão no espelho e não ter aversão. Seja qual for sua arte, todo Artista é  um curador.  Primeiro de si mesmo, depois de quem mutualisticamente toma o mesmo remédio por ele criado e solidariamente partilhado: a arte.

   O Artista abre  gaiolas, liberta culpas, doma dragões internos, tira almas perdidas do inferno, pois, por tamanha  empatia  perante a imperfeição igualadora de todos os homens,  entrega a cada um o direito  da própria  absolvição.  O Artista é  um alquimista que cria o elixir que tira as dores da alma e devolve um pouco de paz no cotidiano histérico que paralisa a humanidade.

   O Artista abre caminho nos lugares inóspitos que habitam os medos. Caminho esse solitariamente desbravado por onde onde passa um séquito de iguais angustiados em busca do sentido para a vida. Ninguém o vê passar pelos obstáculos que deixa sua pele toda lanhada. O tempo em que  a maioria  passa dormindo, seja no sono ou no cotidiano, o artista passa desperto se estudando

   O Artista é  julgado de esquisito, subversivo, desencaixado. Ele, de fato, não anda na mesma estrada da manada. Aliás, sabe que nenhum  homem é gado. Enquanto a maioria foge de conhecer a si mesmo o artista passa a vida a  buscar fazer as pazes consigo, pois sabe que este é seu maior inimigo.  E, ao encontrá-la, devolve também  a de muitos, já que no o amor e na dor,  todos somos iguais, sendo idêntico o caminho que cura o  coração.

    O Artista, acima de tudo, é um empata que desata os laços  que prendem  o homem à  sina da auto-ignorância e leva ao engodo de crer na sua insignificância. O liceu do Artista não tem cátedra, nem título  honorífico mas é  onde se obtém a mais alta graduação humana: pertencer a si mesmo e, em meio ao caos, ser dono da própria paz.

    Sou grata  ao Serguilha por ter se arranhado por mim e, através da tua arte, devolvido um pouco  da minha paz. Esse é o maior prêmio que, sob a minha égide, um Artista pode ter.  E onde mora o Artista? Em mim e em você. Dentro de cada um de nós habita um Artista que o mundo  está  ávido por conhecer.

sábado, 28 de março de 2020

COVID: Cova ou Convite?

**
   Lembro quando vi meu primeiro cabelo branco. Já tinha 37 anos, mas foi um choque. Jamais imaginei que teria  aquela reação.  Sentei com o fio na mão e chorei. Na verdade nunca imaginei que fosse  ter cabelos brancos. Senti pela primeira  vez no corpo o sinal  da minha finitude. Dramática, pensei: estou morrendo!
   É curioso porque começamos  a morrer assim que nascemos. Sempre digo que a morte acompanha a vida e ela que lhe dá sentido. Sem a morte a vida teria outro sabor. Cada dia seria só mais um dia, talvez a existência fosse um extenuante ritual entre acordar e dormir. Fazemos planos, prazos, traçamos metas, sonhos  porque sabemos da escassez do tempo.
   Por que estou escrevendo  isso? Hoje ao escovar os dentes vi um cabelo branco. Mas dessa vez o contemplei. Ao me olhar no espelho lembrei que estamos todos  sentados  na beira  da cama olhando para o fio de cabelo branco na mão. O COVID-19 nos levou para próximos da cova, lembramos que  tem uma nos esperando. Essa proximidade com ela fez com que batesse um desespero. Ninguém quer morrer, todos se protegem.
   Pois bem, tenho uma boa e uma má  notícia:
   A má é  que o COVID-19 vai mostrar para muitos  que eles já  estão  mortos e não  se deram conta.  Vivem sem sonhos,  andam sem abrirem os olhos,  comem  sem saborear. Estão algemados na rotina, casados com pessoas que não  existem mais. A esposa  mudou e você  não aceitou deixar ela ir, o filho ficou adulto  mas continua dormindo  no quarto do adolescente que não existe  mais, o emprego é  um covil que o COVID-19 te libertou.  Tu não és mais o mesmo da foto da identidade. Morremos todos, ou quase. 
    Essa prisão  em que estamos não há habeas corpus  que liberte. Antes não tínhamos tempo para ver o quão enclausurados estávamos  em celas que nos colocamos  por cada escolha que fizemos movida pelo medo, covardia ou insegurança e não  tivemos  coragem de mudar, seja  por orgulho, seja por conveniência  emocional ou financeira. Olhamos  para os lados  e vemos a quem estamos presos e onde é  nossa prisão. 
    Tu, se pudesses escolher um lugar  e companhia  para se confinar seria com quem  te cerca  e no lugar o qual  habitas? Somos presos  as nossas escolhas. Sejam  as que nos trazem alegria ou não. O COVID-19 deu liberdade  temporária  de  coisas que muitos diziam que os prendiam mas que, talvez, não suportem viver sem. 
    A boa notícia? Você não  está  preso a nada e nem ninguém. Essa pandemia vai passar,  a cada um só  cabe se proteger e orar. Quando  sair da quarentena  vais perceber que  única  prisão que te mantém  encarcerado é alma presa ao local que  habita: o corpo.  E a liberdade está  na consciência. Seja em casa, no bar ou na beira da praia, teu corpo será sempre teu lar e a consciência  tua companheira.
    Aproveite  esse tempo precioso e único para conhecer  bem tua morada, seja um bom síndico desse condomínio. Faça  as pazes com a vizinhança. E se não estás  satisfeito com ela, aproveite para encaixotar a mudança. Talvez o COVID-19 esteja batendo na  porta para te despertar do coma profundo e  devolver a completude que comporta cada respiração que a vida te presenteia .


quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

As voltas que a vida dá



**


Em uma conversa com amigos ouvi algo que me pôs a pensar. Um deles falou sobre as voltas da vida. Todos já conhecemos os motes: a vida dá voltas, o fulano vive em volta do próprio umbigo, minha cabeça está dando voltas, e por aí vai... De fato, a vida dá voltas. Assim como a Terra, onde os ciclos são marcados pelas voltas em torno do sol, da lua, de seu próprio eixo. Talvez caiba a analogia entre as voltas que damos na a sociedade, na nossa família e em nós mesmos. Sim! A vida é feita de voltas. Pensa comigo sobre seus dias. Desde que acorda até a hora de dormir, quantas voltas você dá? Volta entre o quarto e o espelho do banheiro, volta da casa até a padaria, ao trabalho, da sua mesa à sala do chefe, da firma até o restaurante, do final do expediente até a academia, à escola do filho, depois ao mercado, voltas entre a geladeira e o sofá... entre o escovar dos dentes ao deitar na cama.
                                                                                                       
A vida é feita nessas voltas que repetimos todos os dias como um mantra. Dar bom dia ao porteiro, a moeda para o flanelinha, esquentar a marmita... aí é que a vida habita. É esse interregno de tempo que come os dias ou os alimenta. Isso é você quem deve saber. Como fala a linda música “contigo’’ do Joaquim Sabina... yo no quiero comerme una manzana dos veces por semana sin ganas de comer. Não engulo mais nada que não quero. Posso não gostar de algo e comer pois aceito a necessidade e passo a gostar. Por isso todo dia no café tomo suco verde. A vida é reiterar, é depurar o paladar. Há voltas chatas que é preciso sempre percorrer. Um casamento onde ainda há amor, deve voltar, mas tirar a erva daninha do caminho e fazer uma nova plantação. A academia é um saco, mas você pode pedalar ou aprender a nadar. O emprego é uma prisão, mas lembra que nas suas leis não há pena perpétua. Há voltas que devemos mudar.

Você detesta o trabalho, mas sempre volta. Odeia academia, mas três vezes por semana está lá. O casamento está uma guerra, mas você se deita com quem tem o outro par da aliança e muitas vezes diz que é por causa das crianças...  Seu corpo se nutre do que você escolhe pegar no mercado entre a prateleira e o caixa e no abrir e fechar da geladeira. Na zona de conforto moram muitas voltas que são ciclos viciosos e, na vã tentativa fugir, nos embriagamos numa inconsciente sabotagem. Uns passam horas em frente à TV, outros comem até se empanturrar. É trabalhar sem parar, cuidar dos filhos sem se cuidar, todo dia passar no bar, malhar, malhar, malhar, é também se isolar ou nunca se envolver... os excessos são tentativas de fugas de algum lugar que não queremos voltar. Porém, a prisão sempre nos acompanha, ela está na mente e o cadeado da cela está aberto, mas é difícil enxergar. Muitos têm medo de sair do lugar.

O  milagre da vida acontece na saída pela tangente. É impulso, não frear nem encurvar. É fazer um novo caminho arrancando à força a cerca que te prende e deixa sua existência nanica como um bonsai. Ninguém é um hamster fadado a passar a vida na gaiola, gastando energia naquela rodinha infame.  Vivemos acorrentados, porém, a prisão está na mente e o cadeado da cela está aberto. A vida é caminho entre o alvo e a seta, você só precisa decidir onde quer chegar. Te digo com toda propriedade, essa resposta está no curto trajeto entre o espelho e o seu olhar. Mire nesse alvo e saia da curva. Tome coragem chame a vida para dançar. Há quantos anos você não dá uma cambalhota na cama antes de deitar?


Obs.: Como tema de casa, para quem gostou do texto, recomendo fortemente que escutem a música “Quem me leva meus fantasmas” do poeta português Pedro Abrunhosa na voz da Betânia. Foi a trilha sonora para escrever essa crônica.




 **