sábado, 28 de março de 2020

COVID: Cova ou Convite?

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   Lembro quando vi meu primeiro cabelo branco. Já tinha 37 anos, mas foi um choque. Jamais imaginei que teria  aquela reação.  Sentei com o fio na mão e chorei. Na verdade nunca imaginei que fosse  ter cabelos brancos. Senti pela primeira  vez no corpo o sinal  da minha finitude. Dramática, pensei: estou morrendo!
   É curioso porque começamos  a morrer assim que nascemos. Sempre digo que a morte acompanha a vida e ela que lhe dá sentido. Sem a morte a vida teria outro sabor. Cada dia seria só mais um dia, talvez a existência fosse um extenuante ritual entre acordar e dormir. Fazemos planos, prazos, traçamos metas, sonhos  porque sabemos da escassez do tempo.
   Por que estou escrevendo  isso? Hoje ao escovar os dentes vi um cabelo branco. Mas dessa vez o contemplei. Ao me olhar no espelho lembrei que estamos todos  sentados  na beira  da cama olhando para o fio de cabelo branco na mão. O COVID-19 nos levou para próximos da cova, lembramos que  tem uma nos esperando. Essa proximidade com ela fez com que batesse um desespero. Ninguém quer morrer, todos se protegem.
   Pois bem, tenho uma boa e uma má  notícia:
   A má é  que o COVID-19 vai mostrar para muitos  que eles já  estão  mortos e não  se deram conta.  Vivem sem sonhos,  andam sem abrirem os olhos,  comem  sem saborear. Estão algemados na rotina, casados com pessoas que não  existem mais. A esposa  mudou e você  não aceitou deixar ela ir, o filho ficou adulto  mas continua dormindo  no quarto do adolescente que não existe  mais, o emprego é  um covil que o COVID-19 te libertou.  Tu não és mais o mesmo da foto da identidade. Morremos todos, ou quase. 
    Essa prisão  em que estamos não há habeas corpus  que liberte. Antes não tínhamos tempo para ver o quão enclausurados estávamos  em celas que nos colocamos  por cada escolha que fizemos movida pelo medo, covardia ou insegurança e não  tivemos  coragem de mudar, seja  por orgulho, seja por conveniência  emocional ou financeira. Olhamos  para os lados  e vemos a quem estamos presos e onde é  nossa prisão. 
    Tu, se pudesses escolher um lugar  e companhia  para se confinar seria com quem  te cerca  e no lugar o qual  habitas? Somos presos  as nossas escolhas. Sejam  as que nos trazem alegria ou não. O COVID-19 deu liberdade  temporária  de  coisas que muitos diziam que os prendiam mas que, talvez, não suportem viver sem. 
    A boa notícia? Você não  está  preso a nada e nem ninguém. Essa pandemia vai passar,  a cada um só  cabe se proteger e orar. Quando  sair da quarentena  vais perceber que  única  prisão que te mantém  encarcerado é alma presa ao local que  habita: o corpo.  E a liberdade está  na consciência. Seja em casa, no bar ou na beira da praia, teu corpo será sempre teu lar e a consciência  tua companheira.
    Aproveite  esse tempo precioso e único para conhecer  bem tua morada, seja um bom síndico desse condomínio. Faça  as pazes com a vizinhança. E se não estás  satisfeito com ela, aproveite para encaixotar a mudança. Talvez o COVID-19 esteja batendo na  porta para te despertar do coma profundo e  devolver a completude que comporta cada respiração que a vida te presenteia .