quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

As voltas que a vida dá



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Em uma conversa com amigos ouvi algo que me pôs a pensar. Um deles falou sobre as voltas da vida. Todos já conhecemos os motes: a vida dá voltas, o fulano vive em volta do próprio umbigo, minha cabeça está dando voltas, e por aí vai... De fato, a vida dá voltas. Assim como a Terra, onde os ciclos são marcados pelas voltas em torno do sol, da lua, de seu próprio eixo. Talvez caiba a analogia entre as voltas que damos na a sociedade, na nossa família e em nós mesmos. Sim! A vida é feita de voltas. Pensa comigo sobre seus dias. Desde que acorda até a hora de dormir, quantas voltas você dá? Volta entre o quarto e o espelho do banheiro, volta da casa até a padaria, ao trabalho, da sua mesa à sala do chefe, da firma até o restaurante, do final do expediente até a academia, à escola do filho, depois ao mercado, voltas entre a geladeira e o sofá... entre o escovar dos dentes ao deitar na cama.
                                                                                                       
A vida é feita nessas voltas que repetimos todos os dias como um mantra. Dar bom dia ao porteiro, a moeda para o flanelinha, esquentar a marmita... aí é que a vida habita. É esse interregno de tempo que come os dias ou os alimenta. Isso é você quem deve saber. Como fala a linda música “contigo’’ do Joaquim Sabina... yo no quiero comerme una manzana dos veces por semana sin ganas de comer. Não engulo mais nada que não quero. Posso não gostar de algo e comer pois aceito a necessidade e passo a gostar. Por isso todo dia no café tomo suco verde. A vida é reiterar, é depurar o paladar. Há voltas chatas que é preciso sempre percorrer. Um casamento onde ainda há amor, deve voltar, mas tirar a erva daninha do caminho e fazer uma nova plantação. A academia é um saco, mas você pode pedalar ou aprender a nadar. O emprego é uma prisão, mas lembra que nas suas leis não há pena perpétua. Há voltas que devemos mudar.

Você detesta o trabalho, mas sempre volta. Odeia academia, mas três vezes por semana está lá. O casamento está uma guerra, mas você se deita com quem tem o outro par da aliança e muitas vezes diz que é por causa das crianças...  Seu corpo se nutre do que você escolhe pegar no mercado entre a prateleira e o caixa e no abrir e fechar da geladeira. Na zona de conforto moram muitas voltas que são ciclos viciosos e, na vã tentativa fugir, nos embriagamos numa inconsciente sabotagem. Uns passam horas em frente à TV, outros comem até se empanturrar. É trabalhar sem parar, cuidar dos filhos sem se cuidar, todo dia passar no bar, malhar, malhar, malhar, é também se isolar ou nunca se envolver... os excessos são tentativas de fugas de algum lugar que não queremos voltar. Porém, a prisão sempre nos acompanha, ela está na mente e o cadeado da cela está aberto, mas é difícil enxergar. Muitos têm medo de sair do lugar.

O  milagre da vida acontece na saída pela tangente. É impulso, não frear nem encurvar. É fazer um novo caminho arrancando à força a cerca que te prende e deixa sua existência nanica como um bonsai. Ninguém é um hamster fadado a passar a vida na gaiola, gastando energia naquela rodinha infame.  Vivemos acorrentados, porém, a prisão está na mente e o cadeado da cela está aberto. A vida é caminho entre o alvo e a seta, você só precisa decidir onde quer chegar. Te digo com toda propriedade, essa resposta está no curto trajeto entre o espelho e o seu olhar. Mire nesse alvo e saia da curva. Tome coragem chame a vida para dançar. Há quantos anos você não dá uma cambalhota na cama antes de deitar?


Obs.: Como tema de casa, para quem gostou do texto, recomendo fortemente que escutem a música “Quem me leva meus fantasmas” do poeta português Pedro Abrunhosa na voz da Betânia. Foi a trilha sonora para escrever essa crônica.




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