segunda-feira, 22 de abril de 2019

Dia de Índio

Hoje é  o dia do índio. Data controvertida  pois, eu e muitos, achamos que não  deve ter uma data para  comemorar  a existência do índio. Creio que seja um dia para refletir sobre a cultura indígena, sobre o que fizemos com eles, sobre onde estão eles no nosso País.
Curiosamente estou lendo o  livro  Emprega-dor: a participação  da classe dominante  na construção do Direito do Trabalho no Brasil - uma história forjada com alienação, estranhamento e ideologia, do amigo  Almiro Eduardo de Almeida que analisa, entre outras coisas,  a história das relações do trabalho no país.
Me deparei com uma parte em que ele fala sobre  a inclusão  do índio como "trabalhador" na fase primitiva da economia brasileira.
De fato, ali  havia muito trabalha-dor. A dor do abuso, do roubo, da exploração, do egoísmo, da ganância, da expulsão e da dominação.
Ele cita uma frase de um vice rei do México que costumava dizer  que "não havia  melhor remédio que o trabalho nas minas para curar a maldade natural dos  índios".
Já no Paraguai, uma pesquisa  apontou que a cada 10 paraguaios, oito acreditavam  que os índios eram como animais, sendo que a maioria  dos latinos tem sangue indígena. Eu já  sabia, pois minha avó paterna era indígena.
Em um exame genético feito pelo meu  irmão em uma pesquisa na UFRGS, mostrou que  temos 17% dessa linda linhagem no sangue. Na verdade, todo brasileiro é  indio, se não no sangue, na cultura a qual fomos forjados.
No Brasil sabemos do escambo, como foram explorados e enganados os verdadeiros donos dessa Terra. Como diz a música da Baby Consuelo:

Antes que os homens aqui pisassem nas ricas e férteis
Terraes Brasilis
Que eram povoadas e amadas por milhões de índios
Reais donos felizes da terra do pau Brazil
Pois todo dia e toda hora era dia de índio
Mas agora eles tem só um dia
Um dia dezenove de abril
Amantes da pureza e da natureza
Eles são de verdade incapazes
De maltratarem as fêmeas
Ou de poluir o rio, o céu e o mar
Protegendo o equilíbrio ecológico
Da terra, fauna e flora pois na sua historia
O índio é exemplo mais puro
Mais perfeito mais belo
Junto da harmonia da fraternidade
E da alegria, da alegria de viver
Da alegria de amar
Mas no entanto agora
O seu canto de guerra
É um choro de uma raça inocente
Que já foi muito contente.

Pra  mim, hoje não é dia de  pintar a cara e tirar foto usando cocar. Hoje é dia de parar para pensar, silenciar, aprender a respeitar, ver o que podemos fazer para mudar essa imagem tão caricata, tratada na maioria das vezes de forma burlesca e desrespeitosa.
Precisamos erradicar as injustiças e preconceitos. Precisamos, definitivamente,   sair do discurso e fazer com que todos os dias sejam de índio!

... e de homem, de  mulher, de negros, de brancos, de pardos,  de pobre, de rico, de deficiente, de homossexual,  de idoso e de criança...

Todo dia tem que ser dia de gente, todas  elas.

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Oitenta Tiros


Hoje a insônia me acordou às 3 da manhã. Um amigo disse que nessa hora muita gente acorda, despertadas pelos anjos, para que, em silêncio, orem pela humanidade, como uma egrégora em busca de paz e acalento. Esse mesmo amigo sempre diz que o faço lembrar da Clarice Lispector. Não no brilhantismo com as palavras, mas na visceralidade da existência.

Não fiz a oração, mas resolvi rever a última entrevista da Clarice Lispector. A entrevista mais verdadeira e intensa que já assisti. Vinte e três minutos de alma exposta frente às câmeras com uma intimidade que o big brother jamais alcançou.

Em determinado momento é perguntado a ela qual, dentre seus trabalhos, seria o seu ‘’filho’’ predileto, por qual teria mais carinho. Ela responde que é o conto chamado “Mineirinho”. Ele fala sobre um bandido que, por suas palavras, morreu com treze balas, quando uma só bastava. Nesse conto descreve sobre o que sente a cada tiro.

Na entrevista ela diz ‘’ Eu me transformei no Mineirinho, massacrado pela polícia. Qualquer que tivesse sido o crime dele uma bala bastava, o resto era vontade de matar. Era prepotência’’.

Por fim, lhe foi perguntado em que medida essa crônica poderia mudar a ordem das coisas. Ela responde que não altera em nada e que escreve sem esperança que altere qualquer coisa.

Obviamente lembrei do Evaldo dos Santos Rosa e os 80 tiros que o mataram. O que diria Clarice ao saber dessa barbárie? Se com 13 ela morreu, com 80 o que lhe sobraria? Nem ladrão ele era. E mesmo que fosse, uma bala só bastava.

Os oitenta tiros não mataram Clarice, ela já está morta. Morreu 10 meses após a entrevista. Aliás, na mesma entrevista, ao final, diz também estar morta em vida, o que acontecia ao fim de cada obra, que eram seus hiatos. E assim como ela, os 80 tiros fuzilaram o Brasil inteiro, estamos todos mortos.

Morreu a nossa tão cansada crença na segurança, na justiça, no Estado, na leveza e alegria  que deveria permear nossos dias.

Como escreve a Clarice sobre Mineirinho:

Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo.


Se nenhum desses oitenta tiros te atingiu, então, desculpe, mas você já está morto e não sabe. E quanto a nós, continuamos.  Vivos, mas nem tanto, ainda enlutados enxugando o pranto dessa morte todos os dias anunciada. Nasci branca, classe média, letrada. Sei que não foram miradas em mim as armas, mas acertaram em cheio meu peito.

A crônica foi publicada em 1978 no livro Para Não Esquecer. Hoje eu escrevo sabendo também que nada irá mudar, mas com um desejo imenso que futuramente esse episódio tão triste esteja apenas na lembrança em algum arquivo morto e não revivido nas capas dos jornais.