domingo, 13 de dezembro de 2015

Sobre ventos, cabelos e AI-5


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Cheguei  no cabeleireiro e sentei como uma rainha. Aquele salão chic cheio de espelhos, lustre de cristal, máscaras da L'Oréal e serviçais trazendo café em xícaras de porcelana chinesa. O intuito era cortar as pontas secas e mudar um pouco o layout, como diz meu pai.

Logo chega o ''mestre das tesouras'', muito simpático e sorridente, com aquele instinto de vassalo e pergunta: quanto posso cortar?

Fixando os olhos nos dele através do espelho, respondi: quanto tu achar que precisa.

Até agora não sei por quê falei isso. Por um lapso de segundo me arrependi. Como depositar tamanha confiança em um estranho? Mas meu orgulho impediu de retificar a resposta. Maldito orgulho ceifador.

O olhar dele se transformou e o senti se regozijar por dentro. Em dois segundos me tornei vassala e ele o suserano.  Ali estava eu, igual o arbusto sendo tosquiado pelo Edward Mãos de Tesoura. Só olhava de canto de olho minhas madeixas caírem ao chão, sem dó nem piedade. Senti minha mãe incorporada naquele corpo. Desde meus 23 anos ela diz que já sou velha para ter cabelos compridos. Praga da D. Inês, só pode.

Maldito tosador. Em questão de segundos fui teletransportada do trono majestoso para a guilhotina. As mãos suavam frio e o coração palpitava. Comecei a colocar a mão no cabelo num ato comedidamente desesperado  e notei que pouco restava, nem dava  para dar aquele nó charmoso no meio do calor da balada.

Já tive cabelo curto e lembro do trabalho que dava para domar. Sempre acordava com os cabelos parecendo um capacete loiro que sobreviveu a um acidente, todo amassado. Já sei que perderei meia hora de sono todos os dias só por causa desse ato inconsequente.

Depois do cabelocídio ele pergunta (agora com aquele ar de superior cheio de intimidade)  se eu queria que escovasse com a franja para o lado ou ao meio. Nessa hora quase mandei ele pegar aquela escova e...

Sai dali meio desnorteada. Entrei no primeiro banheiro que vi e fiquei uns vinte minutos mexendo no cabelo, me encarando no espelho, tentando ver todos os ângulos e me reconhecer em algum. Mandei fotos para os amigos, caso me encontrassem na rua saberem que se tratava de mim. Fui para a rua com a força do Sansão  careca  e segui a vida. Assim os dias se passaram, já que a vida não condiciona sua existência pelo nosso corte de cabelo.

Lembrei que hoje marcam 47 anos do AI-5. Para quem não cabulou as aulas de história, ou quem viveu na época da ditadura, sabe que o corte que ele causou na vida dos brasileiros foi imensamente mais castrador, catastrófico e durador do que qualquer corte de cabelo. E a vida seguiu para todos (ou quase).

Nessa hora me dei conta que vida se condiciona a fatos muito mais importantes do que uma visita frustrante ao cabeleireiro. Visitas ao cabeleireiro não entram nos anais. Assim como os finais de relacionamento ou oportunidades perdidas não entram nas biografias.

No final das contas, percebi que o cabelo curto me cai bem, assim como acordar mais cedo me trouxe cafés da manhã mais sossegados e, melhor do que dar nó no cabelo no calor da balada, é sentir o ventinho fresco do final de tarde deliciosamente contornando tua nuca.

Pois é, quero que isso conste na minha biografia : ''Fabrine, aquela que preferia vento na nuca do que nó na cabeça e mil  cortes nos cabelos a um rasgo na Constituição.’’


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