sexta-feira, 12 de abril de 2019

Oitenta Tiros


Hoje a insônia me acordou às 3 da manhã. Um amigo disse que nessa hora muita gente acorda, despertadas pelos anjos, para que, em silêncio, orem pela humanidade, como uma egrégora em busca de paz e acalento. Esse mesmo amigo sempre diz que o faço lembrar da Clarice Lispector. Não no brilhantismo com as palavras, mas na visceralidade da existência.

Não fiz a oração, mas resolvi rever a última entrevista da Clarice Lispector. A entrevista mais verdadeira e intensa que já assisti. Vinte e três minutos de alma exposta frente às câmeras com uma intimidade que o big brother jamais alcançou.

Em determinado momento é perguntado a ela qual, dentre seus trabalhos, seria o seu ‘’filho’’ predileto, por qual teria mais carinho. Ela responde que é o conto chamado “Mineirinho”. Ele fala sobre um bandido que, por suas palavras, morreu com treze balas, quando uma só bastava. Nesse conto descreve sobre o que sente a cada tiro.

Na entrevista ela diz ‘’ Eu me transformei no Mineirinho, massacrado pela polícia. Qualquer que tivesse sido o crime dele uma bala bastava, o resto era vontade de matar. Era prepotência’’.

Por fim, lhe foi perguntado em que medida essa crônica poderia mudar a ordem das coisas. Ela responde que não altera em nada e que escreve sem esperança que altere qualquer coisa.

Obviamente lembrei do Evaldo dos Santos Rosa e os 80 tiros que o mataram. O que diria Clarice ao saber dessa barbárie? Se com 13 ela morreu, com 80 o que lhe sobraria? Nem ladrão ele era. E mesmo que fosse, uma bala só bastava.

Os oitenta tiros não mataram Clarice, ela já está morta. Morreu 10 meses após a entrevista. Aliás, na mesma entrevista, ao final, diz também estar morta em vida, o que acontecia ao fim de cada obra, que eram seus hiatos. E assim como ela, os 80 tiros fuzilaram o Brasil inteiro, estamos todos mortos.

Morreu a nossa tão cansada crença na segurança, na justiça, no Estado, na leveza e alegria  que deveria permear nossos dias.

Como escreve a Clarice sobre Mineirinho:

Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo.


Se nenhum desses oitenta tiros te atingiu, então, desculpe, mas você já está morto e não sabe. E quanto a nós, continuamos.  Vivos, mas nem tanto, ainda enlutados enxugando o pranto dessa morte todos os dias anunciada. Nasci branca, classe média, letrada. Sei que não foram miradas em mim as armas, mas acertaram em cheio meu peito.

A crônica foi publicada em 1978 no livro Para Não Esquecer. Hoje eu escrevo sabendo também que nada irá mudar, mas com um desejo imenso que futuramente esse episódio tão triste esteja apenas na lembrança em algum arquivo morto e não revivido nas capas dos jornais.

4 comentários:

Ad Vico disse...

Não passa um dia sem que me lembre revoltado dessa tragédia. Acho mesmo que ela foi um divisor de águas na minha vida. O divisor entre o que eu ainda acreditava que algo poderia mudar nesse país, e a certeza de que nada vai mudar. Tenho idade suficiente pra saber que nada vai mudar. Lutzemberger matou a charada: somos um país rico mas MUITO POBRE de políticos.

donado disse...

Conseguiste captar o sentimento mais profundo da impotência humana.Como não sentir o soco de um tiro de fuzil disparado insanamente , por mãos e corações insanos , que sabe Deus, as cavernas que habitam neles.Misericórdia❗

Rodrigo disse...

Parabéns!

Nelma disse...

Simplesmente lindo.... pena ser real...