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Na minha casa não se
falava palavrão. Apesar de meus pais não serem caretas, tinham repúdio às
palavras ofensivas. Então não aprendi a conviver muito bem com elas. Uma vez
chamei meu irmão de pentelho na frente do Bispo da cidade, amigo da
família. Minha mãe ficou zangadíssima e tenho certeza que pensou vários
palavrões para me xingar.
E assim cresci, sem
usar palavras vulgares nas minhas manifestações de ira ou êxtase. Os
palavrões que decorei eram apenas dois: inconstitucionalissimamente e
oftalmotorrinolaringologista. Quando brigava com alguém
dizia: inconstitucionalissimamente pra ti!!! Mas o interlocutor nunca
entendia a ironia.
Os xingamentos entre
mim e meu irmão eram assim: "Bine, vai chupar um prego!" E eu
respondia: "e tu vai tomar naquele lugar!" Sempre acabava
rápido porque não tinha mais o que falar.
Fui crescendo e meus
amigos “boca sujas” aparecendo. Eu sentia (e ainda sinto) uma certa inveja e
admiração por aqueles que quando a bola bate na trave gritam “Ahhhh,
porrrrra!!!” Ou na hora de uma discussão enche a boca para mandar o cara
pra pqp.
Há poucos dias umas
amigas foram juntas num mercado e protagonizaram uma briga com a atendente
estúpida. A mais desbocada delas usou todo o seu vasto repertório chulo. Não
presenciei a cena, mas de escutar a encenação hilária me regozijava
imaginando eu falando isso tudo para uma certa pessoa.
Tenho uma amiga que,
assim como eu, não tem o hábito de falar palavrão, mas confessou que
aproveita quando está fazendo sexo e rasga todo o seu repertório chulo.
Esse acaba sendo um prazer quase orgasmático.
Lembrei do
Drummond, que escreveu um livro cheio de obscenidades, com poesias eróticas,
chamado “ O Amor Natural” mas não teve coragem de publicar em vida, porque
também não se sentia confortável com essa coisa toda. Há palavrões que são
músicas, palavrões que são poesia e poesias que são palavrões
(Bukowski que o diga) .
Só tinha um
momento que eu enchia a boca pra falar palavrão sem consciência pesada. Com
quinze anos comprei o CD Cabeça de Dinossauro dos Titãs e conheci a música
Bichos Escrotos. Em determinada hora eles mandam toda meiguice se foder. Virou
um dos meus hits preferidos, só pra eu poder falar o palavrão.
Na época da
faculdade frequentava um Pub que a banda da casa tocava essa música.
Toda noite que eu estava lá dedicavam ela pra mim. E eu adorava
mandar todo mundo pra casa do caralho levantando o dedo do meio bem
desaforada. Mas só no show. Depois botava um halls na boca
e seguia a festa com a boca limpa.
Não sei se foi esse
cerceamento que me deixou uma pessoa mansa e pouco belicosa ou se já é
instintivo, mas percebi que mesmo se permitido fosse - pois agora já posso
falar a merda que quiser, sem levar tapa na bunda - os palavrões se tornaram
inócuos pra mim. Eu xingo com os olhos, ofendo com os quadris e extravaso
movimentando de forma debochada o canto da boca. Aprendi que há outras formas
de hiperbolizar minhas emoções. Descobri que meu sorriso nem sempre é
simpatia. Essa talvez seja minha maior obscenidade.
Mas de tudo isso, o
inquestionável é o poder libertador do palavrão, que evapora o
álcool e exorciza os demônios. Palavrão é o fio terra da linguagem, o
subterfúgio criado pelo homem para descarregar a carga tóxica
excessiva de emoções comprimidas. Enquanto as pessoas brigam se xingando gastam
mais energia enchendo a boca do que as mãos. Por isso anseio por um mundo
de mais palavrões explícitos ou tácitos e menos vias de fato. E que meus amigos
desbocados sejam ainda mais desbocados porque se a palavra liberta, o palavrão
é a liberdade em euforia.
Como disse Dercy
Gonçalves “palavrão, meu filho, é condomínio, palavrão é fome, palavrão é a
maldade que estão fazendo com um colírio custando 40 mil réis, palavrão é não
ter cama nos hospitais. Palavrão, mesmo que ninguém assuma, é a miséria, a
falta de respeito, é a sacanagem que estão fazendo com o povo. Isso que é
palavrão.”
E o resto do
vocabulário pode ser usado de escracho na boca de quem bem entender e se alguém
se sentir ultrajado, que coloque tarja preta nos ouvidos.
Só sei que geralmente onde tem palavrão não tem
hipocrisia. Talvez por isso eu prefira mil vezes os boca sujas do que os
boca abertas.
* *
2 comentários:
Espetacular! Merece um parabéns por este texto, vou degustalo agora na memória. Muito bom!!!!
O palavrão é a liberdade em euforia. Perfeito ... autenticidade no que diz!!!
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