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Lembro quando vi meu primeiro cabelo branco. Já tinha 37 anos, mas foi um choque. Jamais imaginei que teria aquela reação. Sentei com o fio na mão e chorei. Na verdade nunca imaginei que fosse ter cabelos brancos. Senti pela primeira vez no corpo o sinal da minha finitude. Dramática, pensei: estou morrendo!
É curioso porque começamos a morrer assim que nascemos. Sempre digo que a morte acompanha a vida e ela que lhe dá sentido. Sem a morte a vida teria outro sabor. Cada dia seria só mais um dia, talvez a existência fosse um extenuante ritual entre acordar e dormir. Fazemos planos, prazos, traçamos metas, sonhos porque sabemos da escassez do tempo.
Por que estou escrevendo isso? Hoje ao escovar os dentes vi um cabelo branco. Mas dessa vez o contemplei. Ao me olhar no espelho lembrei que estamos todos sentados na beira da cama olhando para o fio de cabelo branco na mão. O COVID-19 nos levou para próximos da cova, lembramos que tem uma nos esperando. Essa proximidade com ela fez com que batesse um desespero. Ninguém quer morrer, todos se protegem.
Pois bem, tenho uma boa e uma má notícia:
A má é que o COVID-19 vai mostrar para muitos que eles já estão mortos e não se deram conta. Vivem sem sonhos, andam sem abrirem os olhos, comem sem saborear. Estão algemados na rotina, casados com pessoas que não existem mais. A esposa mudou e você não aceitou deixar ela ir, o filho ficou adulto mas continua dormindo no quarto do adolescente que não existe mais, o emprego é um covil que o COVID-19 te libertou. Tu não és mais o mesmo da foto da identidade. Morremos todos, ou quase.
Essa prisão em que estamos não há habeas corpus que liberte. Antes não tínhamos tempo para ver o quão enclausurados estávamos em celas que nos colocamos por cada escolha que fizemos movida pelo medo, covardia ou insegurança e não tivemos coragem de mudar, seja por orgulho, seja por conveniência emocional ou financeira. Olhamos para os lados e vemos a quem estamos presos e onde é nossa prisão.
Tu, se pudesses escolher um lugar e companhia para se confinar seria com quem te cerca e no lugar o qual habitas? Somos presos as nossas escolhas. Sejam as que nos trazem alegria ou não. O COVID-19 deu liberdade temporária de coisas que muitos diziam que os prendiam mas que, talvez, não suportem viver sem.
A boa notícia? Você não está preso a nada e nem ninguém. Essa pandemia vai passar, a cada um só cabe se proteger e orar. Quando sair da quarentena vais perceber que única prisão que te mantém encarcerado é alma presa ao local que habita: o corpo. E a liberdade está na consciência. Seja em casa, no bar ou na beira da praia, teu corpo será sempre teu lar e a consciência tua companheira.
Aproveite esse tempo precioso e único para conhecer bem tua morada, seja um bom síndico desse condomínio. Faça as pazes com a vizinhança. E se não estás satisfeito com ela, aproveite para encaixotar a mudança. Talvez o COVID-19 esteja batendo na porta para te despertar do coma profundo e devolver a completude que comporta cada respiração que a vida te presenteia .
sábado, 28 de março de 2020
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