terça-feira, 9 de setembro de 2008

Insônia Moral e Cívica

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Chico Buarque e Milton Nascimento - Cálice


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Minha noite estava terminando de forma razoável. Estou lendo o "Código da Vida", de Saulo Ramos, uma mistura de autobiografia com a história político-social e jurídica do Brasil. Ele é história viva... Estava na parte em que chegou até suas mãos o processo da família de Vladmir Herzog, pedindo reparações morais, queriam apenas que fosse oficialmente aceita a tese de que houve homicídio. Transcreveu uma parte do processo em que Rodolfo Konder, que estava com Herzog no DOI-CODI no dia em que ele foi morto e testemunhou algumas fases da tortura, narrava o que tinha visto, escutado e também sofrido naquelas salas.

Fechei o livro, vi que o sono não viria dali. O “suicídio” de Herzog me causa náuseas... Meia noite e o sono, após eu abstrair para outras áreas mais floridas dos meus pensamentos, finalmente chegou.

Uma hora da manhã toca o telefone, minha mãe avisando que o Fito Paez estava no Jô. Pulei da cama e fui ver. Quem me conhece sabe que Fito, é Fito!

Entrevistinha tosca do Jô, mas pude ouvir algumas canções que valeram a pena. Sempre vale... mas o sono foi-se.

A cama não me atrai, o livro me repugna, a chuva me afasta da sacada... o computador me chama.

Aqui estou. O tracinho do Word pisca, pisca me pedindo mais, mais palavras, mais histórias. Esse Word é curioso, às vezes faminto e desafiador. Mas hoje me pegou desprevenida. Me sinto tentada a falar sobre as surpresas da vida, sobre quando ela nos pega desprevenida... poderia dar um bom texto, mas não agora.

Melhor falar sobre quando ficamos sem palavras. Quando, por exemplo, os homens de farda cometem uma atrocidade com a sociedade, praticando um execrável homicídio, forjam um ridículo suicídio...

De fato Herzog e outros tantos vítimas de luta pela liberdade cometeriam suicídio se soubessem que o “povo” hoje em dia mal lembra da sua luta - da mesma forma como esqueceu da sua própria pátria- que muitos jovens veriam de forma “romântica” o terror da ditadura, que um grande números de cidadãos brasileiros nem sabe que isso existiu. Pergunte para jovens de 17 anos o que foi o AI 5. Melhor nem perguntar... A “massa de manobra” ainda é o partido mais forte desse país.

Ontem foi 7 de Setembro. O dia foi lindo, fiz meu mate e fui para a Beira-Mar, buscar um pouco do pôr do sol do Guaíba ou o gramado da Redenção. Encontrei uma linda Florianópolis, esse país ainda tem coisas lindas.

No caminho pensei, que dia é hoje, mesmo? Nenhuma bandeirinha verde- amarela, nenhum desfile, nada de Hino Nacional o dia todo. Parece que teve desfile dos milicos em algum lugar... é ultraje falar milico? Nem sei... não vou ser presa por isso.

Nos jornais não vi nenhuma referência ao Dia da Independência. Tudo bem, sei em quais circunstâncias ela aconteceu, sei que não há muitos motivos para se comemorar, recebemos poucas medalhas nas olimpíadas, mas fiquei absorta com tamanho desdém dos brasileiros com esse fato importante. Mercadinho aberto, lan house da esquina fechada porque era dia de manutenção, posto funcionando 24 horas... Vi apenas muitas carreatas e panfletos de políticos pelas ruas. No dia 7 de Setembro só se escutou o Hino Nacional porque teve jogo da seleção.

A única referência foi o Presidente aparecer à noite em rede nacional por alguns minutos. Falou do Petróleo. Depois que acabou o ouro, resta o petróleo, mas acho que o preço que estamos pagando dessa vez é bem mais alto, não sei se teremos tantas reservas assim.
Isso me deixou sem palavras. Claro, se fosse numa segunda-feira, todos lembrariam com alegria deste dia.

A tese do suicídio de Herzog ainda prevalece nos quartéis, o motivo dos feriados só são lembrados se não caírem no domingo, autoridades ainda balbuciam o Hino errado em solenidades, terras da Amazônia, pertencentes à União estão sendo vendidas a estrangeiros... continuo sem palavras.

Infelizmente acho que De Gaulle tinha razão, o Brasil não é um país sério. Nem tenta fingir que é.

Vou voltar ao Fito Paez, acho que pego ainda o último bloco. Talvez tenha a sorte de escutar aquela que diz “ Al outro dia como el ave fênix me levanto com el pie direcho y rio sim razón, lhevo uma loucura caprichosa...”.


Amanhã é outro dia...
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7 comentários:

Unknown disse...

..concordo com vc em certos pontos, injustificável e inexplicável com relação ao Herzog, mas não podemos, e nem devemos, entregar os pontos, a anos escuto que a Ditadura foi isso ou que a Ditadura foi aquilo e até o presente momento não vi ninguem se manifestar "efetivamente" sobre tudo o que aconteceu nesta fase negra do Brasil e apresentar os culpados perante a sociedade, atualmente vemos os famosos esquerdistas no poder e o que constatamos?? fraudes aqui na saúde, desvio de verbas ali nas licitações, mensalões, ministros do STF descaradamente corruptos concedendo "habeas Corpus" na calada da noite para empresários multimilionários... Onde estão os orgãos de classe da nossa sociedade como a OAB, ABI, as organizações estudantis???
Num plano globalizado vemos a América Latina se afundando em novas ditaduras disfarçadas de democracia, com governos populistas e assistencialistas ludibriando a classe pobre que domina a população.
Desculpe estas minhas palavras que podem e demonstram a minha total insatisfação com relação ao futuro do meu País e espero que no futuro possamos resgatar esta data tão importante para nós, verdadeiros brasileiros;
Fraternal abraço.

Alex Ribeiro

donado disse...

Acho que não me enganei quando interrompi a leitura apaixonante do Ex Ministro da Justiça Dr SAULO RAMOS e te sugeri a leitura. Acho, tbm, que a intenção,aparentemente despretenciosa,foi desacomodar quem estava sonolento dentro do conformismo , como quem lava as mãos com um sobonete antibacteriano,depois de mexer no resíduo provindo do conduto cloacal . Parece grotesco, até peço perdão por isso, mas olhando novamente aquelas fotos que foram manchetes de todos os jornais e revistar da época,por muitos meses, tenham sido expurgadas do álbum moral da elite política do nosso país, sem o menor rubor.Gostei muito e te confesso estar a cada dia mais viviada em teu BLOG, palavra de mãe

Fábio Raimundi disse...

Antes de mais nada, preciso adquirir um exemplar deste livro do Saulo Ramos, parece ser daquelas leituras obrigatórias.

Quanto ao Jô Soares, o que está havendo com ele? Mudou a direção do programa? Está enfadonho, sem brilho, chato chato. O sono tem me atraído mais.

Já, a ditadura realmente representa uma ferida aberta que não cicatrizará tão cedo. Herzog representa um entre tantos casos de abuso de poder e violação dos direitos humanos. Mas não gosto de quem tenta reascender questões tão nefastas com o propósito de revirar essa lama e buscar culpados (sou de certa forma um abolicionista Sr. Alex). Penso que a experiência ditatorial deve ser compreendida com um único fim: não repetirmos tamanha atrocidade.

Embora nossa democracia também não espelhe a ideologia libertária contida na expressão, isto é, em tese vivemos uma democracia que, na prática, se revela hoje como uma espécie de ditadura do mercado globalizado. Se estou errado, alguém me responda: o Brasil efetivamente detém autonomia política para governar?

temos liberdade de expressão, é verdade, mas numa real democracia, deveríamos ir muito além, disso, deveríamos, por exemplo, ter o direito de ver todos os canalhas corruptos presos por desviarem dinheiro público, ou seja, dinheiro nosso.

Mas o Brasil continua sendo a República das bananas, com política de pão e circo, repleto de trens da alegria.

Pensando em atrocidades, questiono, quem matou mais gente, a ditadura ou o narcotráfico?

Não se pode negar a existência de um Estado paralelo entrincheirados nos morros cariocas, articulado e organizado, uma verdadeira guerra civil não declarada. Nessa democracia fictícia, o dia que o morro resolver invadir o asfalto, a opressão será sentida na carne.

Na política o homem também evolui a passos lentos e, nesse compasso evolutivo social, ditaduras representam não mais do que o preço do amadurecimento político social. A vida mostra que o homem primeiro atinge os extremos para somente depois buscar o meio termo.

A diferença é que hoje, não obstante o volume de informação ser infinitamente superior, a qualidade e o acesso adequado a mesma ainda não ocorre. Num país de pessoas alfabetizadas pela novela "das oito", tudo é romance. Ledo engano!

Para fechar, enquanto o nível cultural da população se mantiver entre a bunda, a cachaça e o futebol, a qualidade de vida se manterá em níveis pífios e a semana da pátria não será mais do que um feriado para justamente olhar umas bundas tomando uma cerveja depois da pelada!

Vide a tiragem recorde do Diário Gaúcho!

R. disse...

Fabri,

Purificas, ainda que na tua insônia solitária, e de uma maneira inesperada mas pulsante, um pouco dessa mágoa insanável que seguirá sempre ferindo o coração de qualquer alma libertária que tenha tido a chance de conhecer esse exemplo de injustiça acobertada.

É justo teu silêncio, teu pasmo, tua atonia. Mas muito mais me entusiasma tua iniciativa de verbalizar isso.

E o motivo é simples: Herzog e outros lutaram pela palavra, a falada, a escrita, a gritada.

Nosso canto, muito mais do que lamento, deve ser de gratidão, por essa voz que ora nos é licenciada.

Um bjo de esperança, minha querida alma libertária...

Rodrigo

Fabrine disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Fabrine disse...

Querido Rodrigo Tejada... colega de faculdade , irmão de lutas sociais... hoje Procurador Federal. Ainda há esperança. Saudades! SAUDAÇÕES AOS QUE TÊM CORAGEM.

Fabrine disse...

Relendo meu blog, querido colega, quanto orgulho desse país te ter como Defensor Público Federal. Respeito E orgulho! Eu, tu e o Tejada numa mesa de bar seria o melhor lugar para conversarmos sobre a contemporaneidade desse texto. Saudade.